segunda-feira, 21 de dezembro de 2009


O SAMBA E A CANÇÃO

Eduardo Selga
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Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...


Samba-Canção, in A Teus Pés (Ana Cristina César)


Como em toda lírica que escapa, por meio da resignificação, ao impulso do verso fácil; que procura não ser mais uma habitante de Lugar-Comum, esse superpopuloso lugarejo imaginário onde o pseudopoeta se imagina Drumond, a palavra, em Samba-Canção, poema de Ana Cristina César, está longe de ser finalidade em si mesma, gratuita e desbotada. É, antes, ferramenta a construir no interior do texto múltiplos sentidos que, inobstante, não esmaecem o que parece ser o intuito maior do eu-lírico na obra em análise: o amor (carne e lágrimas) apaixonado pelo outro e alguns de seus muitos efeitos colaterais no comportamento de quem ama. Assim é que a presença de palavras surpreendentes por não pertencerem ao universo do discurso romântico (termo aqui utilizado sem vínculo necessário com o Romantismo) utilizado amiúde, não lança névoas que ofusquem o efeito imagético primordial. É o caso de, por exemplo, “modernista”, “comércio” e “avara”. Tais vocábulos “intrusos” se agregam à textura do poema provocando não apenas a resignificação da própria palavra em algumas situações, como também do sentimento que batizamos “amor”.

Acerca da primeira circunstância, exemplificando, “modernista” traz consigo pouca ou nenhuma relação imediata com “moderno”: é, antes, o cinismo que acompanha o sorriso quando localizado no canto da boca, o esgar da incredulidade (“risinho modernista / arranhado na garganta”). Ilustra bem a segunda assertiva, creio, o fato de que o amor é revisitado e visto sob a ótica feminina, distante daquela imagem estereotipada construída pela escola romântica. Ou seja, o eu-lírico não empresta voz à mulher que, perante o amor, assume posição sonhadora, passiva e que se deixa levar pelo ser amado. Ao contrário, a identidade feminina que se nos apresenta em Samba-Canção possui ambos os pés fincados no terreno do racional e da atitude que visa a conquistar ou manter o amor de alguém (“eu fiz tudo pra você gostar / fui mulher vulgar”). Nesses versos, mesmo a aparente subserviência aos caprichos sexuais de outrem é tática a serviço dessa finalidade. Ainda que essa entrega seja sincera (sim, é possível amar sem perder o chão). Há nos versos uma feminilidade mais que moderna, contemporânea, que assume as rédeas do sentimento e não permanece espuma flutuante no oceano do amor idealizado (“e um dia emburrei-me / vali-me de mesuras / (era uma estratégia)”), nau de porcelana e à deriva e implorando ao seu capitão manipule o leme com sensibilidade.

Mas o poema de Ana Cristina César não é, na literatura realizada no Brasi, eco literário de um feminismo militante, que muitas vezes assume o caráter de machismo às avessas. Tanto que o feminino nos versos é traçado para muito além de eum evento biológico ou de uma condição social: é um princípio motriz da espécie humana, vinculado ao Eros freudiano, e que, portanto, não se restringe. Conforme é possível observar nos nono e décimo versos: “malandra, bicha, / bem viada, vândala,”. A palavra “bicha”, referindo-se ao eu-lírico feminino, nos remete ao universo homossexual masculino, ao homem que se prefere mulher por mais bem se adequar ao já citado princípio humano. “Viada” (uma palavra que provoca o susto da surpresa) está semanticamente transposta para o gênero feminino, como que pretendendo demonstrar o quanto a dicotomia macho-fêmea é um fórceps em sentidos vários, inclusive lingüístico. “Bicha” e “viada” representam a celebração dessa fatalidade que é viver, a alegria travesti, que beira à caricatura na medida que se pretende mais mulher que a própria.

Ao término dos vinte e cinco versos sem métrica regular, mas com ritmo bem marcado, tem-se apenas aqui e ali, ponteando, as rimas na acepção clássica e a quase completa ausência de inversões sintáticas na estrofe aparentemente escrita num fôlego só. Esse conjunto provoca, até o penúltimo verso, um ritmo linear, tenso e reflexivo (porém não lento). Mas eis que, no suposto término do poema publicado em A Teus Pés em 1982, lê-se “mas tantas, tantas fiz...” Há nas palavras como que um cansaço de mãos dadas com um arrependimento.

O gênero musical que intitula o poema também ajuda a explicá-lo, até certo ponto. Evoca um passado sonoro brasileiro que teve suas primeiras vozes ao encerrar-se a década de 1930 e se ergueu tendo o amor mal resolvido por tema, tratado em melodias suaves. Como suave e melódico é o texto de Ana Cristina que tese. Uma suavidade que não se confunde com a letargia própria daquele estilo de fazer música. O ritmo do poema é acelerado como num samba e, nesse traço, as vírgulas exercem papel relevante ao criar intervalos regulares e velozes. Por seu lado, as palavras formam, de quando em quando, uma aliteração tônica que lembra o som abafado que mal chega aos lábios quando brota a tristeza por não se alcançar o carinho da pessoa amada; que lembra o choro à força contido (e contido também no sentido de estar dentro de, não apenas o ato repressor). Refiro-me às seqüências “risinho - “modernista – arranhado – garganta” e “burra - porque”. Esse movimento sonoro não é análogo ao samba, que estimula o ouvinte à dança, mas à canção introspectiva, aqui entendida como melodia arquitetada para os ouvidos dos que sofrem a “dor-de-cotovelo”, público alvo do gênero musical que dá título ao poema.

Mas o caleidoscópio não se ausenta nem mesmo nos dois campos em que acima distingui os versos de Ana Cristina: os mesmos encadeamentos produzidos a partir do fonema “erre”, já citados, lembram, onomatopeicamente, o arranhar do reco-reco, típica ferramenta do samba que lhe serve de acompanhamento. Não essencial, portanto. Dele o gênero musical de que falo pode se abster, embora talvez perca em beleza rítmica. E ausência de companhia é tudo o que o eu-lírico lamenta. Afinal pode-se viver sozinho, mas para muitos a ausência do outro faz a vida carecer de tempero e cor.

Retornando ao fim, sobre o qual fiz rápida menção no início da presente análise, o tom é de sussurro, do vigésimo primeiro ao vigésimo quinto versos. O sibilar de “talvez”, “luz”, “spots”, “apenas” e “fiz”, entretanto, deixa no rastro do penúltimo verso (“talvez apenas teu carinho”), uma pergunta cuja resposta aparenta ares de relevância maior que a real: o leitor estaria diante de uma reflexão do eu-lírico ou de um arrependimento confesso ao pé do ouvido da pessoa amada? Digo que apenas parece como quem afirma que a imagem impressa num espelho não é o objeto refletido, e sim sua luz que retorna às nossas retinas, enganadora. É uma ilusão semelhante supor, às pressas, que as duas possibilidades sejam, entre si, antagônicas. Talvez a luminosidade do poema ofusque, contraditoriamente, uma percepção mais acurada das imagens nele registradas para um leitor afoito. Quero dizer que se existe uma confissão também há, coabitando, uma atitude reflexiva. Ademais, poemas não vêm à luz para responder às dúvidas das quais o leitor, no ato de interpretar, se engravida. Pelo contrário, quanto mais releituras, mais interrogações e inquietude. E não raro, os versos fingem.

Como ocorre em Samba-Canção, que não acaba quando termina. Mantém sua circularidade de sentido se for aceito que o último verso (“mas tantas, tantas fiz...”) pode, facilmente, encaminhar a leitura à primeira estrofe. Se o texto fosse escrito em prosa, ficaria assim construída a frase: “mas tantas, tantas fiz... que perdi tantos poemas” (a subordinada significando felicidades possíveis, mas não vividas).

O primeiro, o segundo e terceiro versos já demonstram um caráter distintivo de Samba-Canção, qual seja, a presença de algumas palavras e frases que vestem a aparência da obviedade, mas que trazem um habilidoso trabalho de manipulação semântica. Experimento evidenciar: “Tantos poemas que perdi”, além do significado já expresso no parágrafo anterior (o eu-lírico deixa de saborear hipotéticos momentos felizes), pode também representar uma derrota (palavras e palavras carinhosa e inutilmente pronunciadas ou escritas no intuito de conquistar ou não perder a pessoa por quem o amor é nutrido). Quanto ao segundo verso, que continua no seguinte, “de graça” pode fazer referência a palavras doces ditas ao telefone pelo sujeito amado, mas que não foram retribuídas pelo eu-lírico. É o desdém, às vezes teatral, que faz parte da estratégia feminina quando o assunto é o amor voluptuoso, e nesse caso a exclamativa “taí” (contração de “estar” com “aí” –do outro lado da linha telefônica?-), e que ao mesmo tempo é uma apropriação do samba Ta-Hi, a exclamativa, disfarçada pela vírgula, marca uma mudança de postura que se firma a partir de “eu fiz tudo pra você gostar,” (quarto verso) até o décimo primeiro (“talvez maquiavélica,”). Mas “de graça” não suprime uma outra alternativa, que para melhor entendimento implica numa reestrutura sintática: “Tantos (poemas), de graça, que ouvi,” pode apenas e simplesmente referir-se a palavras bem humoradas proferidas pela segunda pessoa do discurso, que é com quem se fala, mas há mesmo no poema esse interlocutor? Adiante falarei a respeito.

O jogo a que me referi anteriormente, que pertence ao arsenal feminino da sedução, evidencia-se do décimo segundo verso (“e um dia emburrei-me,”) ao vigésimo (“o próprio cor-de-rosa,”). Particularmente curioso, dentro desse raciocínio, é o ato confesso do eu-lírico feminino: o esquema tático resultou numa infantilidade pouco esperta (“e um dia emburrei-me, / vali-me de mesuras / (era uma estratégia), / fiz comércio, avara, / embora um pouco burra, ”) e a conclusão irônica: pouco domina o exato alcance dos instrumentos sedutores (“porque inteligente me punha / logo rubra, ou ao contrário, cara / pálida que desconhece / o próprio cor-de-rosa,”). Por um outro caminho, nesse mesmo entrecho, pode-se chegar a lugar distinto se “cor-de-rosa” for interpretado, metaforicamente, enquanto espírito viçoso. Nesse caso, temos o desânimo, a tristeza, que impedem a manifestação desse vigor latente. E aí temos em “cara / pálida”, num enjambemant, o seu contraponto e o fracionamento do indivíduo. Essa angústia Freud explica ao afirmar, em O Mal-Estar na Civilização, que inexiste vida social organizada sem algemar a sexualidade e a agressividade inerente ao homem. Ou seja, é impossível ser feliz. Ora, há um tom agressivo que, domesticado, quase surdo, perpassa o poema. Os recortes “vândala”, e “maquiavélica” ilustram o argumento, mas a evidência maior, me parece, está em “meia-bruxa, meia-fera” (sexto verso), em que o numeral usado facilmente se confunde com advérbio, e diz ao leitor, como não quisesse de fato dizê-lo: o eu-lírico feminino admite sua metade bruxa e sua metade fera. Nesse sentido não há a idéia de “quase”.

O refinado coloquialismo impregna o texto de um perfume que traz a prosa à flor da pele. O fato de o único ponto (final?) estar situado no início da obra ratifica esse efeito. Também por isso afirmei linhas atrás, por outras palavras, que o verso inicial é o termo e o recomeço do poema. Tudo o mais são vírgulas, reticência (afinal, há arremate a ser construído pelo leitor) e parênteses que, estrategicamente, quebram o ritmo como no extinto samba de breque, em que a melodia era interrompida de súbito para dar espaço a falas. Lembra uma longa carta íntima e confessional, um diário, uma conversa em que não é importante a resposta do outro. Porque o eu-lírico parece imerso em monólogo interior.

Sob essa ótica, a segunda pessoa é, a um só tempo, silêncio absoluto e imagem retórica para, voltando à idéia anteriormente sugerida de arrependimento confesso, ser um ponto de apoio, um repositório de divagações. As rimas internas (“perdi” / “ouvi”; “malandra” / “vândala”) não pertencem apenas à estrutura formal da obra: é a voz da intimidade que, contraditoriamente, necessita transbordar.

Ouçamos o ritmo de Samba-Canção, no qual há um saboroso exercício de intertextualidade a partir de dois sambas antigos e famosos da música brasileira, Pelo Telefone e Ta-Hi, nos terceiro e quarto versos, respectivamente.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009


UMA ORQUESTRA ESQUIZOFRÊNICA: A POLIFONIA ARQUETÍPICA NA OBRA DE FLORBELA ESPANCA

Renata Bomfim
Trabalho apresentado no XI CONGRESSO DE ESTUDOS LITERÁRIOS, em 05 e 06 / 11 /09, NA UFES
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Este trabalho tem como fontes, dados gerados durante a realização da minha dissertação de mestrado em Estudos Literários, intitulada: Vozes femininas: a polifonia arquetípica em Florbela Espanca, defendida em setembro de 2009, na UFES, bem como, da participação, desde 2007, no grupo de pesquisa do CNPq intitulado: “Aproximações regionais: Alentejo Português e Nordeste Brasileiro- Florbela Espanca; romanceiros e romances sergipanos, da UFS.

A questão da autoria em Florbela Espanca (1894- 1930) nasceu sob o signo da misoginia e da confusão. A crítica literária Maria Lúcia Dal Farra, no livro Trocando olhares (1984) faz um estudo aprofundado sobre a nascente da poética florbeliana, revelando os esforços da poeta junto ao mercado editorial e crítico português, como por exemplo a interlocução que estabeleceu com Madame Carvalho, responsável pelo suplemento feminino da revista Século Diário.

A poeta começou a escrever poesias em 1915, e em 1916 reuniu-as num manuscrito que nomeou: “Trocando Olhares”, ano que Portugal ingressou na primeira guerra mundial. Com 88 poemas e 3 contos, o manuscrito Trocando Olhares foi matriz de outros projetos poéticos como Alma de Portugal, O Livro d’Ele, e Minha Terra, meu amor e das antologias poéticas: Primeiros passos (1916) e Primeiros versos (1917), posteriormente, foi também, matriz de seu primeiro livro publicado em 1919, o Livro de Mágoas.

Em Trocando Olhares pode-se observar que Florbela nutriu sua poesia nascente com a tradição poética popular, através da utilização de quadras. O manuscrito em questão é formado por três conjuntos de quadras em redondilha maior, intituladas, As Quadras d’Ele. Sigismundo Spina (s.d., p. 110) esclarece que as quadras foram as formas matrizes do raciocínio poético dos trovadores populares, assim como o dístico. Rougemont (1998, p. 58) reforça acerca da importância dessa forma poética explicitando que “a poesia européia nasceu da poesia dos trovadores” entre os séculos XI e XII, e falava a língua provençal exaltando o amor infeliz e perpetuamente insatisfeito. Assim, vemos que o diálogo que a poética de Florbela estabelece com as trovas extrapola o campo da forma, estendendo-se para o campo temático.

Para um maior entendimento profundidade do diálogo entre esse gênero poético eminentemente popular e a poética florbeliana, destacaremos algumas de suas características. O trovadorismo exaltou o amor livre das amarras do casamento, pois este pressupunha apenas a união de corpos, enquanto o “amor”, ou seja, o “Eros supremo”, seria a projeção da alma para a “união luminosa”, ou seja, “para além de todo amor possível nessa vida”. O poeta, de joelhos, deve jurar amor eterno a sua dama, tal como se faz a um soberano. Florbela inverterá a vassalagem amorosa e cantará o amado em seus versos, ela será a sua serva. Outra característica importante do trovadorismo é que ele surge trazendo uma nova visão de mulher, contrária à difundida até então pelos costumes tradicionais; ela é elevada acima dos homens, tornando-se assim, o seu ideal nostálgico (ROUGEMONT,1998, p. 58).

Queria ser a erva humilde
Que pisasse algum dia,
Pra debaixo de teus pés
Morrer em doce agonia.
(ESPANCA, 1994, p. 33)

O ímpeto da poeta em experimentar levou-a a misturar gêneros, trocar o masculino pelo feminino, ou seja, ela começou por meio da linguagem poética a promover uma troca simbólica de lugares sociais e, de olhares, como, semanticamente, também sugere o título do manuscrito. Em junho de 1916 Florbela escreveu a amiga Júlia Alves dizendo: “Só o soneto é que me convém; a quadra, dizer muito em quatro versos, torna-se para mim bastante difícil” (DAL FARRA, 1984, p. 28).

O Livro de Mágoas, estréia poética de Florbela, se deu sob o signo da misoginia e do plágio. Florbela Espanca foi acusada de dividir autoria com Antônio Nobre e Américo Durão, influências que nunca foram negadas pela poeta, pelo contrário, eram por ela expostas com orgulho. Diz Dal Farra que:

A jovem poetiza se sabe proibida em seus versos, de levar em conta, como forma poética, a tradição literária, a poesia já produzida, consagrada e apreciada, uma vez que qualquer demonstração de permeabilidade seja à literatura popular anônima, seja a literatura de seus autores preferidos, é sentida como infração. [...] nesse contexto, a intertextualidade é pejorativa e julgada como plágio (ESPANCA, 1994, p. 57, grifo nosso).

O Livro de Mágoas foi visto como “licoroso para homens”, “escrito por um Antônio Nobre de saias” (FERREIRA,1965). Como mulher, ao se apropriar do discurso literário, cuja tradição é, predominantemente, masculina, Florbela recebeu, também, como resposta, para além dos parcos comentários depreciativos, o silêncio. Florbela trouxe para a sua poesia a dor de existir, a saudade e, principalmente a mágoa. Foi também no Livro de Mágoas que a poeta entronizou definitivamente a dor, que passou a ser parte integrante da sua estética.

O Livro de Sóror Saudade veio a lume em 1923 e dialoga, especialmente, com a poética de Américo Durão. Mathias (1998, p. 68) descreve que Florbela “confessa a dominância que a poética do colega e amigo enxerta nela” em uma carta que data de 5 de janeiro de 1920, Esta carta foi cedida pelo próprio Durão à Maria Alexandrina e por ela publicada em 1964, em A vida ignorada de Florbela Espanca. Na carta Florbela diz: “Do seu livro veio o meu livro. Obrigado. Amigo Meu! (1) A estética que marca a poética do Livro de Sóror Saudade é a do saudosismo.

O Alentejo, terra de Florbela, é terra de mulheres poetas, lá viveu, no século XV, Públia Hortência (2), Mariana Alcoforado e suas cartas de amor, houve também mulheres célebres que fundaram conventos como Margarida Cheirinha ou Maria das Chagas. Estas vozes e suas muitas histórias, de alguma forma, ecoaram a partir do auditório interior de Florbela no Livro de Sóror Saudade. O soneto Alentejo, dedicado à amiga Buja, no fragmento: “A terra prende aos dedos sensuais/ A cabeleira loira dos trigais/ Sob Bênçãos dulcíssimas dos céus.// Há gritos arrastados de cantigas.../ E eu sou uma daquelas raparigas.../ E tu passas e dizes: “Salve-os Deus!”(ESPANCA, 1996, p. 172).

A dor de existir expressa no Livro de Mágoas e no Livro de Sóror Saudade aparece interiorizada e em transformação, a consciência poética de Florbela vai se fortalecendo e “ela adquire estatuto de poetisa”, deixa de ser o “ser sofredor”, abrindo mão de uma postura passiva para uma ativa e recebendo uma ”titularidade merecida”, a partir das escolhas que passa a fazer (MATHIAS, 1998, p. 87).

Charneca em Flor foi o primeiro póstumo de Florbela, lançado em janeiro de 1931 por Guido Battelli. Este livro foi um marco na obra de Florbela Espanca, pois mostra o amadurecimento da consciência poética florbeliana, que encontra a sua voz entre outras vozes e dialoga de forma amplificada tanto com outros autores, quanto com a tradição. O poema de abertura que possui o mesmo título do livro se apresenta como um farol, prenunciando o que se seguirá na obra da poeta:

Enche o meu peito, num canto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosa...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E, nessa febre ansiosa que me envade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...
Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, amel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
(ESPANCA, 1996, p. 209).

Em Charneca em Flor, a poeta amplia o diálogo, alcançando a tradição hispano americana, através do poeta nicaragüense, Ruben Dario. Em uma carta enviada a Guido Battelli em 3 de agosto de 1930, Florbela diz: “Gosto imenso, imenso do seu grande Ruben Dario. Mas também são dele estes dois belos versos”: Pues no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo,/ Ni mayor pesadumbre que la vida consciente” (ESPANCA, 2002, p. 276). Florbela nessa carta diz estar trabalhando muito no Charneca em Flor, o trecho descrito leva-nos a especular que Battelli tenha apresentado a obra de Dario a Florbela. Esta interlocução poética tem início na epígrafe de Charneca em Flor, que traz o poema de Dario, intitulado Amo, Amas, parte integrante do livro Cantos de Vida e de Esperanza, de 1905.

Acreditamos que ao escolher Dario para prefaciar a sua obra, Florbela Espanca ultrapassou o desejo de apenas homenagear ao poeta, até porque seus livros anteriores é possível perceber que os autores escolhidos, para os prefácios, extrapolam este espaço, atravessando toda a obra.

Dentro do livro Charneca em Flor, Florbela separa um bloco formado por dez sonetos os quais ela intitula He hum não querer mais que bem querer, uma referência explicita ao poema do mestre português, Luis de Camões, mais um diálogo que a poeta estabelece, e este com aquele que é considerado o maior poeta português.

A maioria dos estudiosos da poeta concordam que ela é uma persona dramatis e tanto a sua obra, quanto a sua biografia ficcional, trazem como marca a teatralidade. O pensador russo Mikhail Mikhailovitch Bakhtin, diferencia a personagem lírica da do romance, pois no romance a personagem possui inacabamento, possui força, autoridade, a personagem lírica, por sua vez, possui uma “possibilidade virtual de autonomia”. Parece que autor e personagem se fundem numa unidade. O discurso poético tende a ser monofônico (ele nasce da ilusão de individualidade) mas Bakhtin afirma que não há significado literário fora da comunicação social. Para este pensador, a lírica não restringe o personagem e nem lhe dá caráter acabado. O discurso poético mantém o caráter dialógico, mas a forma como a linguagem é utilizada nesse gênero “faz com que o enunciado a sustente e passe a refletir a intenção do eu lírico”.

O poeta é um ser dialógico, ele descobre novos mundos e os manipula no seu reino das palavras, dialoga com a sua realidade e com a realidade do outro, vem daí as vozes que se fazem sentir nos poemas, mas o sujeito poético se comunica sem mediador. Na poesia , o mundo da linguagem está a serviço da voz do poeta, assim, a natureza monológica da autoridade poética está na sua forma, ou estrutura, mas não no seu conteúdo. Bakhtin destacou também que a autoridade do autor é a autoridade do coro, portanto, para que a vivencia do autor ecoe liricamente, ele precisa ouvir o outro nele, ou seja, ele é mais um com o coro.

Buscando desvendar a polifonia arquetípica florbeliana, recorremos ao pensador Carl Gustav Jung , pai da psicologia analítica. No livro O Espírito na Arte e na ciência, alerta para o perigo das leituras reducionistas, que buscam transformar o poeta em caso clínico, importante destacar que Jung considera a formação imagética uma expressão não-patológica, assim, doente ou saudável, o poeta só pode ser compreendido através de seu processo criador. Viu-se o contrário acontecer na comemoração do I centenário de nascimento de Florbela Espanca, em Évora, quando uma pesquisadora especulou: “contraiu uma doença nervosa (seqüelas de sífilis, provavelmente.)”.

Jung concebeu a psique como uma entidade fragmentada, e a realidade psíquica como “o murmúrio de muitas vozes” que produzem contradição da vontade e reflorescimento da fantasia”. O ego não é senhor de si, ele é um complexo. O complexo individual atua no campo da consciência, e complexo coletivo no campo da cultura. Através da teoria dos complexos Jung propôs a existência de uma camada mais profunda da psique, uma cama cultural, o ICS coletivo que é formado por motivos mitológicos. Para Jung toda mitologia pode ser vista como uma projeção do ICS coletivo. É também no ICS coletivo que estão os arquétipos, ou seja, os elementos primordiais e estruturais da psique humana. Os arquétipos são irrepresentáveis, mas seus efeitos podem ser percebidos através de imagens. O arquétipo é uma figura mitológica que expressa milhões de experiências individuais. O mito é a elaboração criativa transcrita de forma compreensível.

Importante ressaltar que, em consonância com o pensamento de Bakhtin, para Jung, uma obra de arte nunca é unívoca e o arquétipo, é uma experiência perturbadora que solta em nós uma voz muito mais poderosa que a nossa.
A poesia de Florbela é dialógica, polifônica e prenhe de arquétipos femininos,portanto, arquetípica. Dentre estes arquétipos destacamos em nossas pesquisa os de Lilith, Eva e Maria. Na ânsia de fazer dialogarem aspectos tão díspares do feminino a poeta acaba criando uma criatura síntese, um Frankenstein que deseja mar, (com)viver , mas encontra como devir a morte e a errância. Eis a tragédia moderna, segundo Raymond Willians, a separação que isola e impossibilita a troca, o diálogo.
(1) O livro de Durão ao qual Florbela se refere é Vitral da minha dor e não Tântalo, como esclareceu Maria Lúcia Dal Farra, esta crítica analisa em detalhes a relação entre as poéticas de desses dois poetas no livro: Florbela Espanca: Trocando olhares. Estudo introdutório e estabelecimento do texto e notas de Maria Lúcia Dal Farra. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994.
(2) Públia Hortência, Alentejana do século XVI escreveu poemas e defendeu tese em Filosofia.