segunda-feira, 24 de maio de 2010

PALAVRAS PROVOCADORAS

Segundo texto analítico escrito por Eduardo Selga sobre a obra de Casé Lontra Marques, desta vez o objeto é o poema Não violentarei o mar com palavras, inserido no livro Mares inacabados
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Mesmo os satíricos têm plena consciência de que a palavra não é objeto de brinquedo, muito embora possa ser instrumento de escárnio. Ao contrário, ela postula, dos quem a enfrentam, exaustivo e minucioso trabalho de modo a termos um texto com características literárias e não um palavrório despovoado de maestria e, por conseguinte, desimportante.

Casé Lontra Marques revela saber perfeitamente disso, em Não violentarei o paladar com as palavras, composição poética hospedada em Mares inacabados, sua primeira obra literária. No citado poema, a linguagem da qual o autor faz uso, qual prosa rítmica em verso, provoca naquele leitor habituado às letras para além do mero passatempo a sensação, falsa, de que o eu lírico titubeia em suas reflexões (é um poema essencialmente filosófico), na exata medida em que reitera imagens como quem gagueja: “(...) Sabemos que o corpo, / que o corpo prefere a mudez (...)”; “Sim, sabemos. (...)” Outro tratamento dado à linguagem, digno de observação, é a possibilidade de se entender nós enquanto pluralização do eu e também como simples 1ª. pessoa do plural (eu + outro diferente do eu), após o início do poema dar-se em 1ª. pessoa do singular. Ou seja, pode haver mais de um enunciador poético, conforme percepção de quem lê.

O eu-lírico nos afirma que refletir sobre a vida extrai dela o sabor, pois causa movimentos constrangedores no espírito humano sempre predisposto ao conservadorismo, à estática, motivo pelo qual se enclausura numa redoma de vidro por ele mesmo construída. E por isso o eu-lírico não pretende incitar o pensamento, “mesmo que precário”. Entretanto, o “animal inquieto” (leia-se reflexão) procura violar nossa blindagem. Ou seja, viver é circunstância que motiva o indivíduo a refletir sobre a vida, por mais desconfortável que isso se evidencie. Portanto, e aí temos um paradoxo mas não incongruência, Casé nega o início do poema, visto que suscita o pensamento.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

sexta-feira, 7 de maio de 2010

CONCRETUDE ABSTRATA

Breve análise crítica escrita por Eduardo Selga acerca do primeiro livro de poemas de Casé Lontra Marques, Mares inacabados.
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Sintetizar Mares inacabados num breve comentário? Fatalmente, em função da imensa riqueza que habita a poética de Casé Lontra Marques, elementos ficarão omissos ou a palavra se mostrará insuficiente na tentativa de esclarecer outras palavras: as do eu lírico.

Há um navegar pelas palavras. É precisamente um visível e intenso trabalho de manipulação do material linguístico uma das mais agudas características presentes em Mares inacabados, traduzida, exemplificando, numa sintaxe a tal ponto incomum que uma leitura rápida e descompromissada em mergulhar nas camadas mais profundas do texto (a um só tempo é líquido e sólido) pode infundir a certeza de não correlação entre versos: “A dor primeiro ataca / o pátio da apatia. Lutando / para que o lago bloqueado insista / intacto (...)”. Semelhante juízo não é, entretanto, verídico. Muito ao contrário, existe como que um alinhavamento imagético a perpassar todos os poemas de tal modo que este parece, de alguma forma, mostrar-se continuidade daquele. Seguindo a correnteza desse rio, deságua-se num mar de palavras permanentemente resignificadas, recontextualizadas. Assim como ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, não se deve alimentar a ingenuidade de supor, por exemplo, a cada vez em que “paladar” surgir nos poemas terá o mesmo e exato sentido. O que ocorre são frequentes aproximações e rupturas sinonímicas.

Está presente em Mares inacabados um elemento a que denominaremos “poética dos sentidos”, que confere aos poemas um caráter de concretude, reconhecível em vocábulos tais como “vidraça”, “pedras”, “cidade” e constantes menções às diversas formas de violência. Todavia, é uma concretude à primeira vista paradoxal, ancorada naquele abstrato quase invisível a olho nu que percorre a urbanidade: “Lá está a esquina, a cidade evidente. Mares inacabados / que o sol do sarcasmo / infeccionou (...)”. 

quarta-feira, 7 de abril de 2010


O EMPOBRECIMENTO DO DISCURSO NA ESCOLA

Artigo escrito por Eduardo Selga e publicado em 17/03/2010 em A Tribuna (Vitória-ES)
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São pós-modernos os dias em que vivemos, e neles parece faltar a presença efetiva dum elemento com o qual gerações outras dialogaram melhor: a palavra enquanto ferramenta aglutinadora dos sujeitos sociais, por meio da comunicação eficiente, bem escolarizada ou não. Semelhante carência talvez ocorra porque a individualidade hoje assume dimensões tão acentuadas que o Outro é relegado à desimportância; a segunda pessoa do discurso quase inexiste em sua plenitude, porquanto cada vez mais o individualismo prescinde dela, num mecanismo que conduz não apenas ao encastelamento do sujeito em torres de marfim: leva à indigência discursiva toda uma geração que utiliza expressões de sentido genérico e corroídas pelo uso irrestrito, mesmo em situações nas quais se requer especificidade na mensagem. É o caso, por exemplo, de “politicamente correto” e “humanização do trânsito”. Isto provoca a miragem da eficácia no ato comunicativo, “alucinação linguística” que faz supor o perfeito entendimento, quando o que temos, no mais das vezes, é uma grande vaguidão de conceitos transmitidos por um discurso impreciso, embora nem sempre o percebamos. Há, por conseguinte, na sociedade, uma espécie de solidão do indivíduo-ilha meio à coletividade-arquipélago, alimentada pelo vazio que habita o discurso comum.

Em linguística há o princípio da economia, por meio do qual o sujeito, independente de sua cultura idiomática, busca sempre o modo mais breve para comunicar-se, no âmbito da oralidade. Tal fenômeno explica em parte o pequeno vocabulário (satisfatório, porém) que compõe a fala, mas não o sentido um tanto desfocado de certas expressões, a exemplo de “coisar”. O ponto nevrálgico é que esse princípio, que não encontra a mesma aplicabilidade na escrita, tem sido adotado sem maiores pudores pelos alunos do ensino fundamental e médio em suas redações. Ora, um texto dissertativo, o mais utilizado nas salas de aula em função de constituir pré-requisito para ingresso nas universidades, ele exige farta argumentação, no que está implícita a necessidade de variado repertório vocabular. Verter para o texto dissertativo estruturas próprias da oralidade e seu léxico pouco específico pode promover o uso de clichês, essa reiteração do senso comum que em nada contribui para um novo olhar sobre a sociedade. Noutros termos, o sempre mais do mesmo é o mesmo que mais uma vez o sempre. Alterando apenas a ordem dos vocábulos.
O processo pelo qual não enxerguemos interesse na palavra alheia e obsta nosso ânimo de ouvir narrativas cujo sabor é menos o conteúdo que o narrar em si, semelhante processo é também culpado pela notória resistência que temos ao ato de ler enquanto fruição, pois leitura provoca um grande constrangimento da pós-modernidade: saber do Outro, seja ele autor, seja ele personagem (em se tratando de narrativa ficcional). Não obstante, a prática da leitura atenta é imperativa à estruturação dum discurso bem articulado e que, por conseguinte, se sustente numa sociedade como a nossa, na qual o texto escrito segundo a norma padrão é um dos índices diferenciadores de classes sociais.

Eis um grande desarranjo contemporâneo, e nele está inserido o embaraço que envolve a produção textual na escola brasileira. A qualidade insuficiente dos textos relaciona-se, acreditamos, com o pouco-caso pós-moderno que ignora o Outro em virtude do indivíduo, numa postura egocêntrica que depaupera o discurso do sujeito social.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010


DESACONSELHO

Eduardo Selga
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Filhos,

Ao inverso do que foi minha rotina durante muitos anos, já não mais posso estar todos os dias com vocês, observando sempre admirado as personalidades em processo de solidificação e tantas vezes misteriosas. Foi feliz a soma dos genes meus com os maternos. Fui feliz. No entanto, estou impedido de participar, ainda que coadjuvante, daqueles diálogos pincelados duma ironia quase nunca perceptível num primeiro relance. Machadiniana mesmoinha vida está outra, péssima. A pior das noites, esse desterro do qual falo, apoderou-se de mim no exato dia em que fui convidado a me retirar, residir noutra casa.

Por isso, atentem às palavras que ora escrevo. Não permitam, sob pretexto nenhum, mesmo se o magnetismo estiver irresistível, ao micróbio Amor-Paixão alojar-se em seus corações inexperientes, ainda sem os necessários anticorpos. Gostaria acreditassem na advertência, mesmo que, a olho nu, pareça asneira ou raciocínio pessimista de quem enxerga a vida como fosse interminável pelourinho. A menos pretendam sentir na carne os efeitos colaterais: taquicardia, quando o objeto da paixão está presente, ou sua voz, via telefone; insônia, desagradável companheira de cama se nem mesmo palavra ouvimos daquela pessoa, amor unilateral; amnésia crônica, porque esquecemos o mundo teimoso a girar em nosso entorno e ignoramos, em função dum sentimento que, flecha certeira, nos transpassa e nos vira pelo avesso, ignoramos certos fatores realmente importantes para nossa peregrinação na vida; cegueira: quem já sofreu as febres do Amor-Paixão sabe que impossível conseguirmos enxergar as mais escancaradas evidências que ousam opor-se ao encantamento pelo outro; delírios, porquanto nosso raciocínio trabalha suas equações tendo por premissa uma realidade inexistente, fictícia, miragem mesmo. Real apenas aos neurônios do coração.

Muito maduros, inobstante a adolescência, vocês sabem: é o meu amor ferido de morte, em carne viva , que procura, nestas linhas, mostrar sua fratura exposta. É minha alma sangrando que aconselha. Ah, pai... tenha a santa paciência... Não deixe o exagero lhe empurre, cair no lodaçal da mágoa. Ela já tem o senhor cativo e repetindo as ordens sussurradas em seus ouvidos surdos ao bom senso. Mas nem por isso, filhos, a razão fugiu, arrepiou carreira. Façamos um trato nos seguintes termos: analisem com carinho minhas palavras, excluam as tempestades em copo d’água. No fim, verão tornados cruéis no horizonte. Gostaria vê-los conduzindo suas vidas muito longe deles. Tenho medo, todavia. Por estarem agora começando a entender a mecânica da vida, talvez precisem sucumbir ao desastre da paixão unilateral para que meus argumentos fiquem cristalinos.

Para encerrar esta carta, dois esclarecimentos: propositalmente generalizei os infortúnios da paixão, mas a felicidade duradoura no amor, embora possível, é quase utopia; em nenhum instante pretendi defender a solidão enquanto companheira para toda uma vida. Mas creiam na certeza originada do até nunca mais, dito pela mãe de vocês: paixão só não dói quando correspondida, se existir outro par de olhos igualmente deslumbrado. Só não dói enquanto as dores, escondidas, não começam.

Despeço-me.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010


A MÚSICA INCÔMODA

Eduardo Selga
Artigo publicado em 2008 na coletânea Cantigários (Editora Guemanisse), por ter ganho menção honrosa.
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Dos muitos ramos da frondosa musicalidade brasileira, um em especial, características muito próprias e pejorativamente rotulado pela mídia (esse poder que forja opiniões e comportamentos) de “música brega” ou, numa terminoloou, usando uma terminolgia gia já em desuso, “música cafona”, conforme pretendido pelo multimídia Carlos Imperial (1935 – 1992), é o elemento de minha análise no presente artigo. Aliás, indispensável me parece uma observação para advertir a nós mesmos acerca de nossa endêmica incoerência, porquanto, creio, somos um organismo social que ainda não enxergou sua identidade. Algumas das múltiplas faces que nos compõem, nos as recusamos sutilmente e, fuga, somos adeptos da falácia, da dissimulação: o mesmo Carlos Imperial compôs, parceria com Ataulfo Alves, o grande sucesso na voz de Clara Nunes, Você passa, eu acho graça, cuja letra nalguns momentos passeia devagar, porém inequivocamente, no melodramático, atributo considerado “brega” em essência. Senão, vejamos: “Seu jogo é carta marcada / Me enganei, nem sei porquê / Sem saber que eu era nada / Fiz meu tudo de você / Pra você fui aventura / Você foi minha ilusão / Nosso amor foi uma jura / Que morreu sem oração”. O conteúdo nos mostra um eu-lírico entregue a uma paixão, além de incorrespondida, usada como brinquedo.

No intuito de evitar qualquer ambiguidade, há que se esclarecer: quando, no percurso da argumentação, utilizo-me da nomenclatura “brega” (entre aspas porque entendo o termo enquanto fruto do preconceito elitizante), almejo excluir outras vertentes do gênero, para ater-me apenas ao seu viés romântico, no que diz respeito às letras. Claro está, portanto, não me refiro às composições de apelo sexista e de duplo sentido; nem ao “breganejo”, sobre o qual tecerei palavras a título de comparação; tampouco às letras que, na prática, se restringem a um estribilho facilmente assimilável, em geral cômico e chulo.

Retomemos. É razoável desvincular a identidade musical da Espanha do apaixonado bolero? Portugal do melancólico fado? A resposta parece-me óbvia. Todos eles, estilos que expressam em suas letras o amor, o sensual, a saudade, sem muitos subterfúgios lexicais. Como a música “brega” no Brasil. Inobstante, tais canções aqui, quando nos visitam, não sofrem espancamento. Pelo contrário, a mídia, modo geral, enxerga poesia de sedosos predicados. Fugaz cortesia anfitriã ou os nossos velhos complexo de inferioridade e fascínio pela cultura estrangeira?

E o que ocorre quando paixões desesperadas e amores alucinantes, rompidos ou não, encontram seus intérpretes no romantismo “brega”? A lógica parece inverter-se. A elite intelectual de nossa Terra Brasillis não aplaude, não redige laudatórios. Muito ao contrário. Algumas publicações recentes à parte, a produção teórica a respeito da música no Brasil tem por estranho hábito ignorar a existência dessa corrente estética em nossa música. Por outro lado, é sintomático o carinho que a imprensa reserva aos “breganejos”, neologismo atribuído ao radialista Moraes Sarmento (1922-1998) e que tem sido sistematicamente evitado, para que o pejorativo se dilua no imaginário popular. O que, em certa medida, tem-se conseguido. Esse híbrido do sertanejo com o romantismo “excessivo” do estilo “brega” alcançou as grandes vitrines da mídia por calar a “desagradável” linguagem caipira, beber em uma estética que evoca o country (afinal, quem se oporá ao caipirismo estadunidense?) e enrugar o tom dos românticos “bregas” no gosto da grande massa. Portanto, contas feitas, assaz lucrativo para a elite que comanda a indústria cultural brasileira. Assim, quando a mídia afaga esse produto construído pelo citado setor da economia, ela abençoa parcialidades, pois os elogios às duplas ou aos cantores que formavam duplas estão longe de serem os mesmos concedidos ao romântico e amordaçado Wando, por exemplo. É o limbo no qual são obrigados a sobreviver, sem um bom suporte midiático e ansiosos por retornar aos laureis da indústria cultural, respirando com dificuldades por meio de pequenos shows nos interiores dos Brasis. Entretanto (e por isso realcei o tratamento injusto e diferenciado), as canções do intérprete de Gosto de maçã, se comparadas aos sucessos românticos dos “breganejos”, não apresentam letras radicalmente diversas em conteúdo. As proximidades revelam-se mais robustas.

Sob tal aspecto, o pão-de-ló comparado ao pão que o Diabo amassou, vale a pena observar a resposta do cantor Bruno, que faz dupla com Marrone, em entrevista ao jornal A tribuna, Espírito Santo, na edição de 26/12/2007, à pergunta “os sertanejos se transformaram em duplas românticas?”: “os sertanejos já não moram mais no campo, [...], mas o sertanejo tem uma coisa muito importante que não se perdeu, que é falar a mesma linguagem da massa” (grifo meu).

Sim, mas e os outros, que também dominam perfeitamente o código linguístico da massa? “Os outros são os outros e só” (fragmento de Os outros, interpretada por Paula Toller, no grupo Kid Abelha). A eles restam um mal disfarçado muxoxo e o impreciso, e a um só tempo, indelével carimbo de “música de mau gosto”. Que, diz o bom senso mercadológico, é tolerável (faz parte de nossa simulação democrática) desde que resignada ao gueto, convenientemente expulsa das mais luminosas luzes midiáticas. Ao mesmo tempo, esse conceito supõe a existência de ao menos um antônimo a lhe fazer frente e, esse sim, aclamado “representante oficial” da “boa música” produzida no Brasil.

Sobre essa pretensa “música superior” é particularmente útil nos atermos à declaração do poeta Glauco Mattoso à revista Língua portuguesa (edição 26/2007), referindo-se às formas poéticas: “a estrutura do idioma conduz a pronúncia de algumas palavras e forma uma cadência própria” (grifo meu). Tomando por verídico o conceito expresso pelo escritor, perguntaria: o “brega”, na acepção aqui usada, não seria uma cadência inerente ao português brasileiro, em se tratando de letra de música? Ou, ao menos, uma delas?

Aprofundando esse diálogo com a literatura, tanto o vermelho-escarlate presente nas letras românticas rotuladas “bregas”, quanto o vermelho-salmão que exala de, por exemplo, Papel marché (João Bosco), revelam-se nitidamente matizes de uma única cor primária: o Romantismo, aqui entendido como um movimento artístico que abarca vários territórios. Surgida no século XIX, essa corrente não se exauriu inteira: mesclada a outras tendências, permanece nos dias contemporâneos. Apenas algumas mudanças na roupagem. E como bem lembra o pesquisador Nelson Antonio Dutra Rodrigues em sua obra Os estilos literários e letras de música popular brasileira (Arte & Ciências Editora – 2003), “a maioria das letras da música popular brasileira apresentam confissão amorosa, numa linguagem carregada de passionalismo, apelo à emoção. Essas letras aproximam-se, portanto, do estilo do Romantismo (...)”. Note-se que o autor referiu-se à música produzida no Brasil e não à MPB (por isso a expressão, toda ela, grafada em letras minúsculas).

Quem somos, sociedade brasileira, hoje? Uma arquitetura assimétrica, esquizofrênica, inclinada para a direita, babel em que “todos somos filhos de Deus / Só não falamos a mesma língua” (excerto de O mundo, gravada também por Zeca Baleiro). Hipocrisia nascida em nosso berço esplêndido, a colonização portuguesa. Às escusas, idolatramos desdizer dizendo e vice-versa; somos adeptos fanáticos dos eufemismos e das metáforas sociais, necessários para não ferir as inúmeras suscetibilidades do edifício; veladamente maniqueístas, herança da catequese judaico-cristã. Mas um maniqueísmo ímpar, “democrático”: crê existir muitas maneiras “certas” e vários modos “errados” de convivência em sociedade e, sua resultante, de se produzir cultura. Assim, o Paraíso pertenceria à Bossa Nova, à MPB, jamais ao “brega”.

Há uma parcela de nossa elite intelectual, sempre lastimando o Brasil não ser europeu e abrigar enorme plebe rude a denegrir o retrato do País, que não considera de “bom-tom” (o maniqueísmo, sempre), um pecado imperdoável, expressar “sentimentalismo sentimentaloide” em qualquer manifestação cultural, essa urgência que o espírito humano possui de reafirmar-se gerando algo esteticamente emocionante. Não é “bonito” confessar tais sentimentos às escâncaras, sem as belas metáforas, sem os bem elaborados hipérbatos, os desejáveis eufemismos. Sob esse prisma, Pedaço de mim, composta por Chico Buarque, pode e com toda a justeza deve ser vista enquanto obra-prima do estilo nomeado MPB, sigla que não traduz o popular na musicalidade brasileira, uma vez que seu público é em larga medida elitizado. Vejamos um trecho da composição e sua riqueza em lindas figuras linguísticas para expressar a saudade do eu-lírico em relação a quem se ama. Tema, diga-se, comum no estilo “brega”: “Oh, pedaço de mim / Oh, metade arrancada de mim / Leva o vulto teu / Que a saudade é o revés de um parto / A saudade é arrumar o quarto / Do filho que já morreu”.

Sabendo-se que esse poema não foi gravado por um Amado Batista nem por uma Roberta Miranda e sim pelo próprio autor, por Zizi Possi e outros cânones da MPB, é possível enxergar a qual público os versos, em sua plenitude, alcançam. Não por acaso o mesmíssimo que apedreja o chamado estilo “brega”, mormente em sua veia romântica, ora em tese.

Esse malhar Judas escolhido a dedo em Sábado de Aleluia tem suas digitais em uma postura tanto mais nítida em nossa sociedade à medida que seus contrastes se agravam: eliminar, por meios violentos, o diferente, o incômodo, o que sobrevive à margem. E apesar dela. Refiro-me ao fuzilamento de travestis, à queima de mendigos, por exemplo. Modo análogo, esmigalham-se pela via da ridicularização, essa violência, os versos dos “pretensos compositores” que pintam o mosaico sentimental das eufemisticamente batizadas “classes menos favorecidas”. Vê-se, portanto, na prática, a cultura como estratégico elemento difusor dos valores do stabilishment. A endossar um ideário que interessa à permanência do fosso existente entre as classes sociais, maquiando preconceitos com um falso brilhante: a “naturalidade”.

Pretende-se, desse modo, impor a tirania do “esteticamente correto” (outra vez o maniqueísmo), cujos parâmetros são os do grupo social que sempre redigiu a história do único país lusófono nas Américas. E o idioma português, para esse grupo, já soa levemente constrangedor. Por nossa língua ser filha dum pedaço da Europa que, Grandes Navegações à parte, nunca teve pesos político e cultural no mundo. Tão melhor falássemos uma “língua civilizada” como o inglês ou o francês... Finge-se ignorar o óbvio: estratos sociais opostos têm, entre si divergentes, códigos estéticos e valores comportamentais próprios. Regra geral, o cidadão intelectualizado ou que introjete a tirania a que me referi, que aplaude e se deleita com a ótima Pedaço de mim muito dificilmente o fará em relação a qualquer música de Odair José, o “Bob Dylan da Praça Mauá”, nas palavras do jornalista Luiz Antonio Mello, que podem soar elogiosas ou sarcásticas. Em público, quem do núcleo dominante jamais o ovacionaria, exceto a título de escárnio, uma vez que seria atitude reprovável por seus pares? E como a vida em sociedade também significa ser plenamente aceito na “aldeia”...

Ao outro lado da nossa versão cultural do Muro de Berlin, raciocínio similar se aplica. A escandalosa maioria dos indivíduos forçados a viver em nossas periferias, pouca escola, não alcança totalmente o(s) sentido(s) oculto(s) nas imagens de Pedaço de mim. Fugas a esse comportamento geral existem, é certo, mas não atenuam a regra. O habitante desse universo, paralelo ao primeiro, cria engrenagens próprias à vida em sociedade, uma outra estética para interpretar-se a si mesmo e, tanto quanto possível, o universo vizinho.

Estéticas antagônicas. Todavia, em inevitáveis momentos mantêm diálogos pontiagudos. E causam farpas mútuas, no sentido de considerarem a produção cultural alheia uma coisa alienígena, uma “não arte” (e que diabo seria?) pelo fato de a linguagem estética de um não conseguir ler precisamente o que é criado pelo outro. E ainda que se capte o conteúdo da mensagem, o arcabouço linguístico do qual se faz uso é tido por “reprovável” ou “estranho”.

Tal oposição torna-se ainda mais provocadora de reflexões se observarmos o seguinte: ao interpretar as palavras do crítico inglês e teórico de arte Clive Bell (1881-1964), o poeta angolano Aires Almeida (1922-1991) afirma em seu artigo O que é arte?Três teorias sobre um problema central da estética, publicado em 01/09/2000 no site www.criticanarede.com que “não se deve começar por procurar aquilo que define uma obra de arte na própria obra, mas sim no sujeito que a aprecia.”.

Semelhante tese põe nas mãos do ouvinte, em se tratando de música, a prerrogativa de qualificar o que vem a ser ou não obra de arte. Outras palavras, num contraponto já usado aqui: se um indivíduo é fã de Enquanto durmo (Zélia Duncan) não é razoável esperar que ele experimente a mesma emoção estética (item essencial para, assim o diz Clive Bell, estabelecer-se o que é ou deixa de ser objeto artístico) ao ouvir a letra de Garçom, (Reginaldo Rossi). E vice-versa. Parece-me forçoso, pois, reconhecer: a emoção estética, apenas ela e divorciada de aspectos outros, emoção que implica no fato altamente subjetivo e subordinado ao ambiente sociocultural de o ouvinte gostar da letra duma música, é elemento precário para caracterizá-la enquanto arte. A menos que se admita a existência duma “boa música” para uns que não a seja, concomitante, para outros.

E “gostar” é um verbo transitivo, intransitivo ou intransigente? A pergunta adquire importância para além da retórica se nos ativermos à gravação de Caetano Veloso para a música Você não me ensinou a te esquecer (assim mesmo, os pronomes “você e “te” na mesma frase), original do compositor Fernando Mendes, sucesso “brega” na década de 1970, integrante da trilha sonora do filme Lisbela e o prisioneiro (Brasil - 2003). Muito embora a profusão de elogios (mas também críticas afiliadas ao conservadorismo preconceituoso), alguns preferiram o eufemismo (nossa dissimulação vai para o trono ou não vai?) no intuito de condenar o cânone da MPB pela “heresia”. O texto assinado pelo jornalista José Teles em 03/08/2003, publicado no site www.nordesteweb.com, é bem ilustrativo quanto a isso: “Caetano Veloso cantando Fernando Mendes é fácil de entender, é notória sua capacidade de transformar em brilhantes os diamantes do repertório do povão” (grifo meu). Mas me parece difícil admitir a ocorrência dessa metamorfose tão profunda, como insinua, competente, o repórter. Porque se o grande “quasímodo” presente no “brega” romântico está na letra, “simplória”, “sem literariedade”, sem “apuro estético”, Caetano não reescreveu nenhum verso. Logo, não reside em sua linguagem escrita, “áspera”, o motivo de o “brega” romântico ser considerado “menor” na música produzida no Brasil. Entendo, inclusive que o vocábulo “sentimentaloide”, muito usado para diminuir o estilo em tese, não passa dum sinônimo ridicularizante do aplaudido “lirismo”. Se este possui conotações elevadas, diáfanas, imateriais, aquele seria um “exagero” sentimental. E, como já foi dito, muitos sustentam, ainda que à boca miúda: certas emoções não devem ser extravasadas com muita ênfase. Daí, para não respingar “mediocridades ralés” num dos maiores nomes da MPB e nela mesma por consequência, daí parte da crítica ter afirmado que Caetano não emprestou sua voz a uma música choramingas, e sim lírica. Bela saída retórica, sem dúvida.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010


TRAVESSURAS DA MENINA MÁ

Resenha escrita pela jornalista Maria Truccolo* (PUC/RS), gaúcha há 13 anos em São Paulo
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" Travessuras...", do escritor peruano Mario Vargas Llosa (2006 – Ed. Objetiva/Alfaguara) narra a trama de um amor sadomasoquista e covarde de parte a parte na dupla de protagonistas. "Uma tarde, sentados no jardim, ao crepúsculo, ela me disse que se algum dia eu pensasse em escrever a nossa história de amor, não a deixasse muito mal, senão o seu fantasma viria me puxar os pés todas as noites. – E por que pensou isso? – Por que você sempre quis ser escritor, e nunca teve coragem. Agora que vai ficar sozinho, pode aproveitar, assim esquece a saudade. Pelo menos, confesse que lhe dei um bom material para escrever um romance. Não foi, bom menino?" Ricardo Somocurcio, o suposto bom menino, vive às voltas com o fantasma de Lily (primeiro codinome da menina má), porque não tem coragem de amar a Lily real e por isso mesmo é massacrado por ela, uma masoquista que, se não encontra ela mesma um sádico, transforma-se em sádica. Nesse caso, Ricardito faz o papel do masoquista, o que goza no sofrimento. Quando tem a chance de se unir definitivamente a Lily, tenta transformá-la na mulher caseira, casada, que ela não é. Em repúdio, e porque não quer assumir o papel de masoquista, Lily se vai e esvai pelo mundo, tão covardemente quanto Ricardito, porque, como ele, até ama, mas não sabe amar. "Mineiro só é solidário no câncer", disse Nelson Rodrigues. Ricardito finalmente aceita Lily, quando esta revela um câncer terminal que a levará à morte. Nova vinda e ida. Mas, agora, definitiva.
* Pseudônimo adotado pela autora para textos gratuitos