segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

DESACONSELHO

Eduardo Selga
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Filhos,

Ao inverso do que foi minha rotina durante muitos anos, já não mais posso estar todos os dias com vocês, observando sempre admirado as personalidades em processo de solidificação e tantas vezes misteriosas. Foi feliz a soma dos genes meus com os maternos. Fui feliz. No entanto, estou impedido de participar, ainda que coadjuvante, daqueles diálogos pincelados duma ironia quase nunca perceptível num primeiro relance. Machadiniana mesmoinha vida está outra, péssima. A pior das noites, esse desterro do qual falo, apoderou-se de mim no exato dia em que fui convidado a me retirar, residir noutra casa.

Por isso, atentem às palavras que ora escrevo. Não permitam, sob pretexto nenhum, mesmo se o magnetismo estiver irresistível, ao micróbio Amor-Paixão alojar-se em seus corações inexperientes, ainda sem os necessários anticorpos. Gostaria acreditassem na advertência, mesmo que, a olho nu, pareça asneira ou raciocínio pessimista de quem enxerga a vida como fosse interminável pelourinho. A menos pretendam sentir na carne os efeitos colaterais: taquicardia, quando o objeto da paixão está presente, ou sua voz, via telefone; insônia, desagradável companheira de cama se nem mesmo palavra ouvimos daquela pessoa, amor unilateral; amnésia crônica, porque esquecemos o mundo teimoso a girar em nosso entorno e ignoramos, em função dum sentimento que, flecha certeira, nos transpassa e nos vira pelo avesso, ignoramos certos fatores realmente importantes para nossa peregrinação na vida; cegueira: quem já sofreu as febres do Amor-Paixão sabe que impossível conseguirmos enxergar as mais escancaradas evidências que ousam opor-se ao encantamento pelo outro; delírios, porquanto nosso raciocínio trabalha suas equações tendo por premissa uma realidade inexistente, fictícia, miragem mesmo. Real apenas aos neurônios do coração.

Muito maduros, inobstante a adolescência, vocês sabem: é o meu amor ferido de morte, em carne viva , que procura, nestas linhas, mostrar sua fratura exposta. É minha alma sangrando que aconselha. Ah, pai... tenha a santa paciência... Não deixe o exagero lhe empurre, cair no lodaçal da mágoa. Ela já tem o senhor cativo e repetindo as ordens sussurradas em seus ouvidos surdos ao bom senso. Mas nem por isso, filhos, a razão fugiu, arrepiou carreira. Façamos um trato nos seguintes termos: analisem com carinho minhas palavras, excluam as tempestades em copo d’água. No fim, verão tornados cruéis no horizonte. Gostaria vê-los conduzindo suas vidas muito longe deles. Tenho medo, todavia. Por estarem agora começando a entender a mecânica da vida, talvez precisem sucumbir ao desastre da paixão unilateral para que meus argumentos fiquem cristalinos.

Para encerrar esta carta, dois esclarecimentos: propositalmente generalizei os infortúnios da paixão, mas a felicidade duradoura no amor, embora possível, é quase utopia; em nenhum instante pretendi defender a solidão enquanto companheira para toda uma vida. Mas creiam na certeza originada do até nunca mais, dito pela mãe de vocês: paixão só não dói quando correspondida, se existir outro par de olhos igualmente deslumbrado. Só não dói enquanto as dores, escondidas, não começam.

Despeço-me.

2 comentários:

  1. salve, selga, "enquanto as dores, escondidas, não começam. Despeço-me." Lapidar fim, que é o começo da narrativa, nela mesma, já que a escrita, conforme derrida, é pharmakon, veneno e artifício de uma não vida, de uma morte sobrecodificada nas letras garatujas intrusas da literatura.
    saudações,
    luisdelamancha

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  2. Me impressionou, Eduardo.
    Abraços.
    Thobias

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