segunda-feira, 24 de maio de 2010

PALAVRAS PROVOCADORAS

Segundo texto analítico escrito por Eduardo Selga sobre a obra de Casé Lontra Marques, desta vez o objeto é o poema Não violentarei o mar com palavras, inserido no livro Mares inacabados
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Mesmo os satíricos têm plena consciência de que a palavra não é objeto de brinquedo, muito embora possa ser instrumento de escárnio. Ao contrário, ela postula, dos quem a enfrentam, exaustivo e minucioso trabalho de modo a termos um texto com características literárias e não um palavrório despovoado de maestria e, por conseguinte, desimportante.

Casé Lontra Marques revela saber perfeitamente disso, em Não violentarei o paladar com as palavras, composição poética hospedada em Mares inacabados, sua primeira obra literária. No citado poema, a linguagem da qual o autor faz uso, qual prosa rítmica em verso, provoca naquele leitor habituado às letras para além do mero passatempo a sensação, falsa, de que o eu lírico titubeia em suas reflexões (é um poema essencialmente filosófico), na exata medida em que reitera imagens como quem gagueja: “(...) Sabemos que o corpo, / que o corpo prefere a mudez (...)”; “Sim, sabemos. (...)” Outro tratamento dado à linguagem, digno de observação, é a possibilidade de se entender nós enquanto pluralização do eu e também como simples 1ª. pessoa do plural (eu + outro diferente do eu), após o início do poema dar-se em 1ª. pessoa do singular. Ou seja, pode haver mais de um enunciador poético, conforme percepção de quem lê.

O eu-lírico nos afirma que refletir sobre a vida extrai dela o sabor, pois causa movimentos constrangedores no espírito humano sempre predisposto ao conservadorismo, à estática, motivo pelo qual se enclausura numa redoma de vidro por ele mesmo construída. E por isso o eu-lírico não pretende incitar o pensamento, “mesmo que precário”. Entretanto, o “animal inquieto” (leia-se reflexão) procura violar nossa blindagem. Ou seja, viver é circunstância que motiva o indivíduo a refletir sobre a vida, por mais desconfortável que isso se evidencie. Portanto, e aí temos um paradoxo mas não incongruência, Casé nega o início do poema, visto que suscita o pensamento.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

sexta-feira, 7 de maio de 2010

CONCRETUDE ABSTRATA

Breve análise crítica escrita por Eduardo Selga acerca do primeiro livro de poemas de Casé Lontra Marques, Mares inacabados.
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Sintetizar Mares inacabados num breve comentário? Fatalmente, em função da imensa riqueza que habita a poética de Casé Lontra Marques, elementos ficarão omissos ou a palavra se mostrará insuficiente na tentativa de esclarecer outras palavras: as do eu lírico.

Há um navegar pelas palavras. É precisamente um visível e intenso trabalho de manipulação do material linguístico uma das mais agudas características presentes em Mares inacabados, traduzida, exemplificando, numa sintaxe a tal ponto incomum que uma leitura rápida e descompromissada em mergulhar nas camadas mais profundas do texto (a um só tempo é líquido e sólido) pode infundir a certeza de não correlação entre versos: “A dor primeiro ataca / o pátio da apatia. Lutando / para que o lago bloqueado insista / intacto (...)”. Semelhante juízo não é, entretanto, verídico. Muito ao contrário, existe como que um alinhavamento imagético a perpassar todos os poemas de tal modo que este parece, de alguma forma, mostrar-se continuidade daquele. Seguindo a correnteza desse rio, deságua-se num mar de palavras permanentemente resignificadas, recontextualizadas. Assim como ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, não se deve alimentar a ingenuidade de supor, por exemplo, a cada vez em que “paladar” surgir nos poemas terá o mesmo e exato sentido. O que ocorre são frequentes aproximações e rupturas sinonímicas.

Está presente em Mares inacabados um elemento a que denominaremos “poética dos sentidos”, que confere aos poemas um caráter de concretude, reconhecível em vocábulos tais como “vidraça”, “pedras”, “cidade” e constantes menções às diversas formas de violência. Todavia, é uma concretude à primeira vista paradoxal, ancorada naquele abstrato quase invisível a olho nu que percorre a urbanidade: “Lá está a esquina, a cidade evidente. Mares inacabados / que o sol do sarcasmo / infeccionou (...)”.