sexta-feira, 2 de outubro de 2009

DIVINO JOAQUIM JESUS DE DEUS

Eduardo Selga *

A leitura atenta da tragédia contemporânea escrita por Jorge Andrade, Vereda da Salvação(1), é reveladora sob numerosos pontos de vistas, dada a riqueza de possibilidades interpretativas a que o primoroso texto nos remete. Aí reside, acredito eu, um dos aspectos relevantes que coloca em dois campos distintos os escritores dos escrevinhadores: o estilo. Essa característica faz toda a diferença entre o texto bisonho (e, portanto, com grandes possibilidades de vida muito breve ou nula na história da literatura produzida no Brasil) e o texto que, ainda durante sua construção, torna-se longevo e essencial para que seja possível compreender mais fielmente os caminhos pelos quais a arte de escrever ficção trafegou e trafega, no Brasil. E é ele, o estilo individual apurado, que possui a capacidade de tornar sedutor um texto cujo tema não seja nenhuma originalidade. Especificamente falando de Vereda da Salvação, a peça ajuda a construir um importante capítulo nas páginas na dramaturgia brasileira, qual seja, a denúncia social sem histerismos quadriloqüentes e tampouco sem abrir mão da artisticidade da obra.

Parece-me relevante destacar que o episódio histórico sobre o qual Vereda da Salvação sustenta suas muitas tensões (é um texto estruturalmente tenso) foi apenas mola propulsora para o autor, com a qual pôde dar vozes a dois fenômenos sociais que se constituem no fundamento da obra: o fanatismo religioso, fruto direto do misticismo exacerbado, sentimento que freqüentemente habita os espíritos dos indivíduos postos à margem da sociedade; o messianismo, não raro conseqüência do primeiro fenômeno, com uma característica adicional: possui inevitáveis desdobramentos políticos, quase sempre contrários ao poder estabelecido. Noutras palavras, se a tragédia ocorrida no início do século XX em Malacacheta (MG) envolvendo membros da Igreja Adventista da Promessa está impressa na obra de Jorge Andrade que ora analisamos, também estão, de certa forma, Canudos e outros semelhantes pretéritos brasileiros. E também doutras terras, porquanto a fisionomia universal da literatura torna-se ainda mais evidente quando dialoga com temas que ultrapassam as fronteiras geográficas dum país. Assim, em graus dessemelhantes quanto à visibilidade, é possível enxergar, ainda que estejamos visitando épocas diferentes se considerarmos a primeira vez em que foi levada aos palcos Vereda da Salvação (1964), os episódios protagonizados pelos Borboletas Azuis (1977, Campina Grande/PB); e pelo Templo do Povo (1978, Guiana), por exemplo. É que a obra de arte, não raro, se antecipa à história, que, por sua vez, adora repetir-se (oxalá São Paulo Coelho, padroeiro dos clichês, me perdoe por ter usado dois deles, impiedosamente, um seguido do outro).

A grande perícia do autor em arquitetar a psicologia dos (as) personagens, os diálogos eminentemente simbólicos e os muitos pontos de conflitos engendrados durante a urdidura do enredo, criam uma atmosfera cênica caracterizada pela tensão e sufocamento entre os (as) personagens centrais, que envolve também todos os campesinos. É como se os embustes que, consciente ou inconscientemente se pretende ocultos por uma ideologia, manifestassem o tempo todo sua urgência de vir à tona e mostrar sua verdadeira face, apesar saberem que a crença fanática reprimiria tal intento. Por outro lado, também é como se as verdades evidentes buscassem abrigo seguro contra a insânia reinante. Essa dialética cênica (mostrar ocultando e ocultar mostrando) perpassa Vereda da Salvação do início ao fim, sempre num ritmo crescente em que estão inclusos o sufocamento e a tensão sobre os quais fiz breve referência parágrafos acima. E, ao avesso do que seria razoável esperar, é desnecessário ao leitor ou ao espectador atingir o epílogo para vivenciar contundentes emoções: em todo o corpo da obra existem vários ápices (por exemplo, o êxtase religioso do qual resulta quase todos os personagens assumindo nomes bíblicos), algo muito próprio da teledramaturgia brasileira. Tais episódios, se trasladados para uma novela televisiva, funcionariam como as famosas “cenas do próximo capítulo”, visto que induzem o leitor e o espectador a permanecerem em contínua e crescente expectativa. Não é surpresa, pois, que obras suas tenham sido veiculadas por emissoras de TV, tais como Globo, Cultura e a extinta Tupi.

Duas características presentes na cena final traduzem muito bem o enredo, naquilo que ele encarna de fanatismo religioso: é patética em si mesma e também profundamente melancólica, se o leitor e o espectador se atentarem para o fato de Joaquim estar, junto aos outros agregados, nu, girando em círculos e agitando os braços no intuito de alçar vôo ao Céu, é causado pela ingenuidade do (as) personagens na interpretação das causas reais de seus sofrimentos. Dói quando a leitura feita é a alienação política, no gesto dos colonos; a leitura da religião enquanto última vereda que os salvem da realidade crua e árida, em prejuízo da consciência social enquanto ferramenta transformadora dessa mesma realidade. Traduzindo numa só frase, o velho bordão “o destino a Deus Pertence”. Muito provável resida aí o elemento basilar utilizado pela nossa tradicionalmente míope e daltônica esquerda brasileira para sua crítica tão feroz à primeira montagem da peça, ocorrida em 1964, ano que se constituiu num doloroso marco divisor na história política do Brasil.

O multifacetado personagem Joaquim, líder religioso que gradualmente põe os pés no manicômio do fanatismo e por isso mesmo passa a crer-se o próprio Cristo reencarnado, desde os primeiros movimentos da trama evidencia o anseio de não apenas conduzir o “rebanho” a um pasto tranqüilo e verdejante (o Paraíso visto quase como uma pintura do ideal poético árcade), mas também assumir o mesmo prestígio político, via religião, de que o personagem Manoel usufrui entre os agregados, eclipsando o líder que, importante sublinhar, evidencia não perceber a exata medida de sua influência na pequena comunidade rural. Nesse sentido ele funciona perfeitamente como aquele “sujeito bom caráter” e trabalhador esforçado em que o senhor da casa-grande (perdoem o lapso conceitual; mudemos a expressão para “o fazendeiro”) pode confiar.

Para atingir seu propósito não existem para Joaquim os limites éticos. Tampouco, contraditoriamente (e a incoerência, ao nível aparencial, é traço marcante no personagem), os bons sentimentos cristãos. Assim é que, sem nenhum melindre, faz uso de todas as ferramentas disponíveis, pouco recomendáveis a quem se considera o Cristo redivivo: manipula Geraldo, filho de Manoel, a ponto daquele não mais reconhecer o pai como tal; num diálogo envolvendo os dois líderes, os agregados e o meteórico personagem Onofre, Joaquim tenta desmoralizar seu “oponente” por intermédio do discurso religioso: “- Se um homem não tem mando na sua casa, como vai zelar dos irmãos? Foi Deus mesmo que falou, Manoel. Está escrito no livro”. (ANDRADE, 1986: 238).

Perfeitamente estabelecido nos tronos religioso e político do poder conquistado, porque Manoel se rende ao “enviado de Deus” e ao acordo tácito e taciturno existente na comunidade que confere amplos poderes a Joaquim, ele, o fanatismo religioso, passa a “dar as cartas”. Mas se embaralha, ainda que Joaquim conscientemente julgue esteja obedecendo as leis divinas: induz os colonos a provocarem o aborto em Artuliana; ao infanticídio da personagem Jovina; à expulsão de Artuliana, por estar supostamente possuída pelo Coisa-Ruim (afinal, é inaceitável, à luz dos indiscutíveis dogmas religiosos, o comportamento libertário da personagem que faz absoluta questão de liderar a si mesma e o a sensualidade do seu corpo).

Ao mesmo tempo em que Joaquim se mostra avesso ao tema “mulheres”, alegando o imperativo da castidade, numa possível tentativa de ocultar sua impotência sexual ou de não deixar vir à baila suas inclinações pederastas devidamente reprimidas, o personagem idealiza Dolor, sua mãe: a imagem que ele constrói e enxerga é a um só tempo erotizada e santificada, evidenciando infantilismo e sexualidade mal resolvida. Vejamos, abaixo, exemplos extraídos do texto para melhor ilustrar os conceitos acima emitidos.

Erotização
“Joaquim: Só casava com uma mulher igual a você, mãe! Mas, não tem par no mundo. Que culpa tenho eu? (Joaquim acaricia o rosto de Dolor, contraindo ligeiramente o rosto. Depois, sorri)” (ANDRADE, 1986: 262);

Santificação
“Joaquim: (levanta-se, irado) É Maria! Maria das pureza! Os nomes de danação acabou. Já não existe homem nem mulher na face do mundo. (Vira-se para os agregados) Vem! Vem pedir perdão! Todo mundo de joelho diante de Maria!” (ANDRADE 1986: 267);

Infantilismo
“Artuliana: Pecado que bota vida no mundo. Se é mentira minha, por que a Dolor não fala? Vamos! Pergunta p’ra ela!

Joaquim: (Enrodilha-se no chão) Mãe! Você não diz nada, mãe?”(ANDRADE, 1986: 268)”.

A personagem Dolor pode ser interpretada como a representação simbólica da incondicionalidade do amor materno levado às últimas conseqüências, o que remete o leitor e o espectador à mãe de Jesus que, segundo os relatos bíblicos, sempre foi solidária aos propósitos do filho. Por perceber nitidamente que os excessos doentios praticados por Joaquim interditaram qualquer estrada de retorno, e que uma tentativa de retirá-lo das nuvens para que volte ao minifúndio espinhoso da realidade poderia redundar em grande sofrimento para o filho, ela abraça, cúmplice voluntária, a fantasia dele e assume interpretar o papel que o “Cristo da Roça” espera, qual seja, o de santa. Esse elemento, na peça, possui fundamental importância simbólica, uma vez que Dolor materializa o cidadão comum executando no tecido social a função que o status quo lhe ordena. Ou seja, o medo da personagem em extinguir a fantasia paranóica do filho equivale ao receio que o indivíduo carrega de contrariar o Estado.

É possível perceber que Jorge Andrade trabalha as características dos (as) personagens de Vereda da Salvação obedecendo fielmente uma linha mestra no que tange à suas psicologias, em nenhum momento perdendo de vista a coerência comportamental. Mesmo a paranóia de Joaquim está abarrotada de sua lógica e, assim, produz significação coerente. Partindo desse princípio, não seria exagerado afirmarmos que as principais personagens femininas se mostram essencialmente lúcidas e os principais masculinos alienados. Maniqueísta a análise? Talvez, mas com certeza é didática o bastante para atingir seu objetivo: mostrar o item de maior relevo (mas não o único) em cada indivíduo composto por Jorge Andrade. Senão, vejamos:

Artuliana: não se permite manipular (é senhora do seu corpo e do seu prazer);

Dolor: entende com cristalina nitidez o quanto seu filho está doente;

Ana: Tem plena consciência do quanto os atos de Joaquim podem prejudicar a coletividade;

Joaquim: Doentiamente fanático;

Manoel: Não percebe sua relevância enquanto liderança política;

Geraldo: Marionete nas mãos de Joaquim;

O motivo pelo qual a força do Estado se faz presente na fazenda, por meio do seu braço armado que é a polícia, não é, como parece, nenhuma preocupação com infanticídio e agressões a crianças. Tais “justificativas” se configuram em disfarces da motivação real: o messianismo. Afinal, fossem mesmo os colonos para Tabocal, conduzidos por Joaquim, o fazendeiro seria vítima dum pecado imperdoável no capitalismo, o prejuízo financeiro. Mais que isso, o messianismo no Brasil, quando não controlado pelo poder dominante, pode se transformar numa arma contra esse mesmo poder e sua estrutura fundiária ainda arcaica e que em muitos casos faz lembrar as Capitanias Hereditárias: produz feudos enormes e improdutivos. Assim, havia um risco implícito de, resultante da peregrinação, a força messiânica questionar essa estrutura que gera gigantescas extensões de terra em poucas mãos.

Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que o Estado armado contra uma comunidade ancorada em dores e misérias, possui um ponto de contato com o mito de Ícaro: Dédalo, seu pai, (o Estado) ordenou ao filho (o indivíduo) que não voasse muito alto (liberdade), embora tivesse asas, porque poderia resultar em queda no oceano (repressão e morte).

Mas onde está o reconhecimento a Jorge Andrade, que muito raramente é lembrado pela chamada “crítica especializada”? Afinal, ele foi e é um autor importantíssimo para o teatro no Brasil. Ou só ícones que caem nas graças da mídia merecem a glória?

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* Graduando em Letras-Português pela Universidade Federal do Espírito Santo
1- Andrade, Jorge. Marta, a árvore e o relógio; segunda ed. revista e ampliada.
São Paulo: Perspectiva, 1986.

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