sexta-feira, 13 de novembro de 2009

QUEM SÃO O VAMPIRO E A DEBORAH DE MIGUEL MARVILLA

Eduardo Selga
Trabalho apresentado no XI CONGRESSO DE ESTUDOS LITERÀRIOS, promovido pela UFES de 05 a 06/11/2009
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Certa vez um dos maiores nomes da literatura praticada no Espírito Santo, Miguel Marvilla, essencialmente poeta, pretendeu a prosa. E nos legou Os mortos estão no living, uma obra ímpar sob aspectos vários e sobre a qual, segundo escreveu no posfácio o professor Paulo Roberto Sodré, muito há a ser estudado (MARVILLA, 2006). Trataremos aqui dos personagens de O vampiro, Deborah, um dos contos abrigados no livro do saudoso Marvilla.

À semelhança de Drácula de Bram Stoker (BIAGI, acesso em 18 fev. 2009), o vampiro, em visita à personagem Deborah, estabelece com ela um colóquio pautado pela sedução em diversos graus de explicitude. Esse exercício de intertextualidade, entretanto, refere-se diretamente a uma das faces do vampiro, personagem da literatura universal sempre revisitado por narrativas contemporâneas: é o perfil estabelecido pelos ultrarromânticos que, muito afeitos à morte e ao sobrenatural, apropriaram-se das narrativas orais pertencentes às tradições milenares espalhadas pelas mais diversas culturas do Planeta acerca da entidade, nas quais ela nada tem de apaixonada ou apaixonante, por estar fortemente vinculada ao conceito cristão de Inferno (VAMPIRISMO, 2009).

Observando, pois, as tradições transmitidas pela oralidade, poderíamos considerar paradoxal e despropositada a atmosfera lírica que se dá durante a evolução da trama entre o personagem mítico e Deborah. Tal lirismo desconstrói, paulatinamente, uma possível expectativa de terror que acaso se revele por intermédio do título ao parágrafo terceiro. A ponto de a leitura percorrer o lírico como principal vereda interpretativa e descobrirmos no sentimentalismo dos personagens de O vampiro, Deborah ecos do Romantismo em sua vertente mais exacerbada. Ou seja, o suposto paradoxo nem chega a se constituir se atentarmos para uma característica em particular da referida escola literária, a junção do grotesco com o sublime e, nas palavras de Vítor Manuel e Silva, numa aprofundada análise das raízes da estética literária romântica, o fato de que

[...] A meditação sobre a noite, os sepulcros e a morte insere-se na temática pessimista [...], e traduz a nostalgia do infinito e a funda insatisfação espiritual que já angustiam os pré-românticos e que hão-de revelar-se mais exacerbadamente nos românticos (SILVA, 1976, p. 468).

Este o vampiro que Miguel Marvilla nos apresenta, como parte da obra Os mortos estão no living: lúbrico, sedutor o bastante para envolver sentimentalmente, por meio do seu magnetismo pessoal, Deborah, personagem feminina que conforme uma das interpretações possíveis, pode não ser vítima, no sentido estrito do termo. A mesma ambiguidade se dá com o vampiro, uma vez que se ele entregue à paixão é conjectura plausível na perspectiva da escola romântica, não menos o é presumir seu discurso encantador estratégia hábil em pormenores concebida visando a saciar-se em dose dupla: carente de sangue, que é criatura hematófaga, assim nos diz a tradição oral; carente de sexo porque ainda mantém consigo a essência humana, não rigorosamente morto nem exatamente vivo. Vejamos um breve excerto.

Estava especialmente denso, investido em sua melhor aura de fascínio e horror. Queria impressionar. Não saíra de casa sem rever todos os detalhes: os vincos das calças, os sapatos alemães, as meias Lupo, as abotoaduras de ouro. Previra tudo, até o tempo gasto escovando os dentes (MARVILLA, 2006, p. 22).

Um dos motivos que contribuem para a solidez do vampiro e de Deborah enquanto personagens reside no fato de ambos preexistirem ao texto de Marvilla. Se o primeiro é um bem-sucedido exercício intertextual, Deborah pode ser lida como representação arquetípica do mito Perséfone, se nos lembrarmos que “O comportamento humano segue padrões que podem ser compreendidos de forma mais ou menos nítida pelos chamados arquétipos [...]” (BOECHAT, 1997, p. 23). E também se levarmos em conta a afirmação de que a deusa grega é, numa de suas faces,

“[...] o modelo da juventude e sensibilidade, modelo de fragilidade real ou aparente, dependente dos outros para conseguir sobreviver; [...], (que pode ser uma pessoa altamente manipuladora por trás da máscara de ser indefeso que ostenta)” (BARROS, acesso em 17 de jul. 2009).

Portanto, a intertextualidade, compreendida enquanto prática que alia o texto escrito ao texto oral, aliada ao arquétipo, demonstram a preexistência dos personagens do conto. Como nos diz Wolfgang Iser,

[...] o texto ficcional contém muitos fragmentos identificáveis na realidade, que, através da seleção, são retirados tanto do contexto sócio-cultural, quanto da literatura prévia ao texto. Assim retorna ao texto ficcional uma realidade de todo reconhecível, posta entretanto agora sob o signo do fingimento (ISER, 1983, p. 400).

Perséfone, além das características já mencionadas, é também, conforme a mitologia grega, a soberana do reino dos mortos, o Hades (BOECHAT, 1997), que o cristianismo, estrategicamente, satanizou. Como o fez em relação ao vampiro, seja personagem do imaginário popular, seja personagem literário advindo da oralidade.

Considerando que na trama existe um jogo de dupla sedução a envolver ambos os personagens de tal modo que o estado emocional deles se altera à medida que o diálogo, afetuoso e em certa medida melodramático, evolui, parece-nos razoável conjeturar tal elemento da narrativa (quem seduz quem) uma referência à passagem do mito de Perséfone na qual, embora sequestrada pelo Hades a fim de tornar-se soberana do seu reino, a personagem mitológica cria certo vínculo afetivo com ele. Alegoricamente, temos que o vampiro “sequestra” a personalidade de Deborah, que se mostra emocionalmente dependente dele e se apaixona por quem, em tese, seria seu algoz.


Referências


BARROS, Maria Teresa Mendonça de. Mitos e arquétipos femininos na comunicação. NPP Núcleo Brasileiro de Pesquisas Psicanalíticas. Disponível em: . Acesso em: 17 julho 2009.

BIAGI, Orivaldo Leme. Drácula, de Bram Stoker – o horror e o romantismo de Francis Ford Coppola. Boca do Inferno. Disponível em: Acesso em : 18 fevereiro 2009.

BLANC, Cláudio. O mito do vampiro. Conhecer Fantástico, São Paulo, 2009. Vampirismo, p. 4-7.

BOECHAT, Walter. Arquétipos e mitos do masculino. In:______. Mitos e arquétipos do homem contemporâneo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 19-40.

ESTUDANDO vampiros. Conhecer Fantástico, São Paulo, 2009. Vampirismo, p. 41-43.

ISER, Wolfang. Os atos de fingir ou o que é fictício. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. Vol. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, p. 417-441.

MARVILLA, Miguel. O vampiro, Deborah. In:______. Os mortos estão no living. 2. ed. Vitória: Floricultura, 2006. p. 21-26.

SILVA, Victor Manuel de Aguiar e. Rococó, pré-romantismo e romantismo. In: ______. Teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1976. p. 463-488.

SODRÉ, Paulo Roberto. Carta aos mortos. In: MARVILA, Miguel. Os mortos estão no living. 2. Ed. Vitória: Floricultura, 2006. p. 131-138.

Um comentário:

  1. Lançamento

    Occasum
    Orácio Felipe

    Johann é imortal. Mas a imortalidade carrega consigo muitas angústias. A maior delas, a falta de um amor que a acompanhe. Ele buscava, como criatura das trevas, uma companheira que pudesse transformar. Ele buscava um antídoto e havia conquistado alguma força compondo poesias, admiradas tanto pelos seus criados, Igor e Fredy, quanto por aqueles que o perseguiam. Seus buquês de palavras, como costumava chamar, era entregue àquelas que admirava. Mas havia uma única rosa em seu caminho, para a qual ele passaria a dedicar sua existência, que não era efêmera. Um vampiro buscando extinguir sua chama assassina através do amor de uma mulher.

    www.clubedosautores.com.br

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