quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A MÚSICA INCÔMODA

Eduardo Selga
Artigo publicado em 2008 na coletânea Cantigários (Editora Guemanisse), por ter ganho menção honrosa.
__________________________________________________________
Dos muitos ramos da frondosa musicalidade brasileira, um em especial, características muito próprias e pejorativamente rotulado pela mídia (esse poder que forja opiniões e comportamentos) de “música brega” ou, numa terminoloou, usando uma terminolgia gia já em desuso, “música cafona”, conforme pretendido pelo multimídia Carlos Imperial (1935 – 1992), é o elemento de minha análise no presente artigo. Aliás, indispensável me parece uma observação para advertir a nós mesmos acerca de nossa endêmica incoerência, porquanto, creio, somos um organismo social que ainda não enxergou sua identidade. Algumas das múltiplas faces que nos compõem, nos as recusamos sutilmente e, fuga, somos adeptos da falácia, da dissimulação: o mesmo Carlos Imperial compôs, parceria com Ataulfo Alves, o grande sucesso na voz de Clara Nunes, Você passa, eu acho graça, cuja letra nalguns momentos passeia devagar, porém inequivocamente, no melodramático, atributo considerado “brega” em essência. Senão, vejamos: “Seu jogo é carta marcada / Me enganei, nem sei porquê / Sem saber que eu era nada / Fiz meu tudo de você / Pra você fui aventura / Você foi minha ilusão / Nosso amor foi uma jura / Que morreu sem oração”. O conteúdo nos mostra um eu-lírico entregue a uma paixão, além de incorrespondida, usada como brinquedo.

No intuito de evitar qualquer ambiguidade, há que se esclarecer: quando, no percurso da argumentação, utilizo-me da nomenclatura “brega” (entre aspas porque entendo o termo enquanto fruto do preconceito elitizante), almejo excluir outras vertentes do gênero, para ater-me apenas ao seu viés romântico, no que diz respeito às letras. Claro está, portanto, não me refiro às composições de apelo sexista e de duplo sentido; nem ao “breganejo”, sobre o qual tecerei palavras a título de comparação; tampouco às letras que, na prática, se restringem a um estribilho facilmente assimilável, em geral cômico e chulo.

Retomemos. É razoável desvincular a identidade musical da Espanha do apaixonado bolero? Portugal do melancólico fado? A resposta parece-me óbvia. Todos eles, estilos que expressam em suas letras o amor, o sensual, a saudade, sem muitos subterfúgios lexicais. Como a música “brega” no Brasil. Inobstante, tais canções aqui, quando nos visitam, não sofrem espancamento. Pelo contrário, a mídia, modo geral, enxerga poesia de sedosos predicados. Fugaz cortesia anfitriã ou os nossos velhos complexo de inferioridade e fascínio pela cultura estrangeira?

E o que ocorre quando paixões desesperadas e amores alucinantes, rompidos ou não, encontram seus intérpretes no romantismo “brega”? A lógica parece inverter-se. A elite intelectual de nossa Terra Brasillis não aplaude, não redige laudatórios. Muito ao contrário. Algumas publicações recentes à parte, a produção teórica a respeito da música no Brasil tem por estranho hábito ignorar a existência dessa corrente estética em nossa música. Por outro lado, é sintomático o carinho que a imprensa reserva aos “breganejos”, neologismo atribuído ao radialista Moraes Sarmento (1922-1998) e que tem sido sistematicamente evitado, para que o pejorativo se dilua no imaginário popular. O que, em certa medida, tem-se conseguido. Esse híbrido do sertanejo com o romantismo “excessivo” do estilo “brega” alcançou as grandes vitrines da mídia por calar a “desagradável” linguagem caipira, beber em uma estética que evoca o country (afinal, quem se oporá ao caipirismo estadunidense?) e enrugar o tom dos românticos “bregas” no gosto da grande massa. Portanto, contas feitas, assaz lucrativo para a elite que comanda a indústria cultural brasileira. Assim, quando a mídia afaga esse produto construído pelo citado setor da economia, ela abençoa parcialidades, pois os elogios às duplas ou aos cantores que formavam duplas estão longe de serem os mesmos concedidos ao romântico e amordaçado Wando, por exemplo. É o limbo no qual são obrigados a sobreviver, sem um bom suporte midiático e ansiosos por retornar aos laureis da indústria cultural, respirando com dificuldades por meio de pequenos shows nos interiores dos Brasis. Entretanto (e por isso realcei o tratamento injusto e diferenciado), as canções do intérprete de Gosto de maçã, se comparadas aos sucessos românticos dos “breganejos”, não apresentam letras radicalmente diversas em conteúdo. As proximidades revelam-se mais robustas.

Sob tal aspecto, o pão-de-ló comparado ao pão que o Diabo amassou, vale a pena observar a resposta do cantor Bruno, que faz dupla com Marrone, em entrevista ao jornal A tribuna, Espírito Santo, na edição de 26/12/2007, à pergunta “os sertanejos se transformaram em duplas românticas?”: “os sertanejos já não moram mais no campo, [...], mas o sertanejo tem uma coisa muito importante que não se perdeu, que é falar a mesma linguagem da massa” (grifo meu).

Sim, mas e os outros, que também dominam perfeitamente o código linguístico da massa? “Os outros são os outros e só” (fragmento de Os outros, interpretada por Paula Toller, no grupo Kid Abelha). A eles restam um mal disfarçado muxoxo e o impreciso, e a um só tempo, indelével carimbo de “música de mau gosto”. Que, diz o bom senso mercadológico, é tolerável (faz parte de nossa simulação democrática) desde que resignada ao gueto, convenientemente expulsa das mais luminosas luzes midiáticas. Ao mesmo tempo, esse conceito supõe a existência de ao menos um antônimo a lhe fazer frente e, esse sim, aclamado “representante oficial” da “boa música” produzida no Brasil.

Sobre essa pretensa “música superior” é particularmente útil nos atermos à declaração do poeta Glauco Mattoso à revista Língua portuguesa (edição 26/2007), referindo-se às formas poéticas: “a estrutura do idioma conduz a pronúncia de algumas palavras e forma uma cadência própria” (grifo meu). Tomando por verídico o conceito expresso pelo escritor, perguntaria: o “brega”, na acepção aqui usada, não seria uma cadência inerente ao português brasileiro, em se tratando de letra de música? Ou, ao menos, uma delas?

Aprofundando esse diálogo com a literatura, tanto o vermelho-escarlate presente nas letras românticas rotuladas “bregas”, quanto o vermelho-salmão que exala de, por exemplo, Papel marché (João Bosco), revelam-se nitidamente matizes de uma única cor primária: o Romantismo, aqui entendido como um movimento artístico que abarca vários territórios. Surgida no século XIX, essa corrente não se exauriu inteira: mesclada a outras tendências, permanece nos dias contemporâneos. Apenas algumas mudanças na roupagem. E como bem lembra o pesquisador Nelson Antonio Dutra Rodrigues em sua obra Os estilos literários e letras de música popular brasileira (Arte & Ciências Editora – 2003), “a maioria das letras da música popular brasileira apresentam confissão amorosa, numa linguagem carregada de passionalismo, apelo à emoção. Essas letras aproximam-se, portanto, do estilo do Romantismo (...)”. Note-se que o autor referiu-se à música produzida no Brasil e não à MPB (por isso a expressão, toda ela, grafada em letras minúsculas).

Quem somos, sociedade brasileira, hoje? Uma arquitetura assimétrica, esquizofrênica, inclinada para a direita, babel em que “todos somos filhos de Deus / Só não falamos a mesma língua” (excerto de O mundo, gravada também por Zeca Baleiro). Hipocrisia nascida em nosso berço esplêndido, a colonização portuguesa. Às escusas, idolatramos desdizer dizendo e vice-versa; somos adeptos fanáticos dos eufemismos e das metáforas sociais, necessários para não ferir as inúmeras suscetibilidades do edifício; veladamente maniqueístas, herança da catequese judaico-cristã. Mas um maniqueísmo ímpar, “democrático”: crê existir muitas maneiras “certas” e vários modos “errados” de convivência em sociedade e, sua resultante, de se produzir cultura. Assim, o Paraíso pertenceria à Bossa Nova, à MPB, jamais ao “brega”.

Há uma parcela de nossa elite intelectual, sempre lastimando o Brasil não ser europeu e abrigar enorme plebe rude a denegrir o retrato do País, que não considera de “bom-tom” (o maniqueísmo, sempre), um pecado imperdoável, expressar “sentimentalismo sentimentaloide” em qualquer manifestação cultural, essa urgência que o espírito humano possui de reafirmar-se gerando algo esteticamente emocionante. Não é “bonito” confessar tais sentimentos às escâncaras, sem as belas metáforas, sem os bem elaborados hipérbatos, os desejáveis eufemismos. Sob esse prisma, Pedaço de mim, composta por Chico Buarque, pode e com toda a justeza deve ser vista enquanto obra-prima do estilo nomeado MPB, sigla que não traduz o popular na musicalidade brasileira, uma vez que seu público é em larga medida elitizado. Vejamos um trecho da composição e sua riqueza em lindas figuras linguísticas para expressar a saudade do eu-lírico em relação a quem se ama. Tema, diga-se, comum no estilo “brega”: “Oh, pedaço de mim / Oh, metade arrancada de mim / Leva o vulto teu / Que a saudade é o revés de um parto / A saudade é arrumar o quarto / Do filho que já morreu”.

Sabendo-se que esse poema não foi gravado por um Amado Batista nem por uma Roberta Miranda e sim pelo próprio autor, por Zizi Possi e outros cânones da MPB, é possível enxergar a qual público os versos, em sua plenitude, alcançam. Não por acaso o mesmíssimo que apedreja o chamado estilo “brega”, mormente em sua veia romântica, ora em tese.

Esse malhar Judas escolhido a dedo em Sábado de Aleluia tem suas digitais em uma postura tanto mais nítida em nossa sociedade à medida que seus contrastes se agravam: eliminar, por meios violentos, o diferente, o incômodo, o que sobrevive à margem. E apesar dela. Refiro-me ao fuzilamento de travestis, à queima de mendigos, por exemplo. Modo análogo, esmigalham-se pela via da ridicularização, essa violência, os versos dos “pretensos compositores” que pintam o mosaico sentimental das eufemisticamente batizadas “classes menos favorecidas”. Vê-se, portanto, na prática, a cultura como estratégico elemento difusor dos valores do stabilishment. A endossar um ideário que interessa à permanência do fosso existente entre as classes sociais, maquiando preconceitos com um falso brilhante: a “naturalidade”.

Pretende-se, desse modo, impor a tirania do “esteticamente correto” (outra vez o maniqueísmo), cujos parâmetros são os do grupo social que sempre redigiu a história do único país lusófono nas Américas. E o idioma português, para esse grupo, já soa levemente constrangedor. Por nossa língua ser filha dum pedaço da Europa que, Grandes Navegações à parte, nunca teve pesos político e cultural no mundo. Tão melhor falássemos uma “língua civilizada” como o inglês ou o francês... Finge-se ignorar o óbvio: estratos sociais opostos têm, entre si divergentes, códigos estéticos e valores comportamentais próprios. Regra geral, o cidadão intelectualizado ou que introjete a tirania a que me referi, que aplaude e se deleita com a ótima Pedaço de mim muito dificilmente o fará em relação a qualquer música de Odair José, o “Bob Dylan da Praça Mauá”, nas palavras do jornalista Luiz Antonio Mello, que podem soar elogiosas ou sarcásticas. Em público, quem do núcleo dominante jamais o ovacionaria, exceto a título de escárnio, uma vez que seria atitude reprovável por seus pares? E como a vida em sociedade também significa ser plenamente aceito na “aldeia”...

Ao outro lado da nossa versão cultural do Muro de Berlin, raciocínio similar se aplica. A escandalosa maioria dos indivíduos forçados a viver em nossas periferias, pouca escola, não alcança totalmente o(s) sentido(s) oculto(s) nas imagens de Pedaço de mim. Fugas a esse comportamento geral existem, é certo, mas não atenuam a regra. O habitante desse universo, paralelo ao primeiro, cria engrenagens próprias à vida em sociedade, uma outra estética para interpretar-se a si mesmo e, tanto quanto possível, o universo vizinho.

Estéticas antagônicas. Todavia, em inevitáveis momentos mantêm diálogos pontiagudos. E causam farpas mútuas, no sentido de considerarem a produção cultural alheia uma coisa alienígena, uma “não arte” (e que diabo seria?) pelo fato de a linguagem estética de um não conseguir ler precisamente o que é criado pelo outro. E ainda que se capte o conteúdo da mensagem, o arcabouço linguístico do qual se faz uso é tido por “reprovável” ou “estranho”.

Tal oposição torna-se ainda mais provocadora de reflexões se observarmos o seguinte: ao interpretar as palavras do crítico inglês e teórico de arte Clive Bell (1881-1964), o poeta angolano Aires Almeida (1922-1991) afirma em seu artigo O que é arte?Três teorias sobre um problema central da estética, publicado em 01/09/2000 no site www.criticanarede.com que “não se deve começar por procurar aquilo que define uma obra de arte na própria obra, mas sim no sujeito que a aprecia.”.

Semelhante tese põe nas mãos do ouvinte, em se tratando de música, a prerrogativa de qualificar o que vem a ser ou não obra de arte. Outras palavras, num contraponto já usado aqui: se um indivíduo é fã de Enquanto durmo (Zélia Duncan) não é razoável esperar que ele experimente a mesma emoção estética (item essencial para, assim o diz Clive Bell, estabelecer-se o que é ou deixa de ser objeto artístico) ao ouvir a letra de Garçom, (Reginaldo Rossi). E vice-versa. Parece-me forçoso, pois, reconhecer: a emoção estética, apenas ela e divorciada de aspectos outros, emoção que implica no fato altamente subjetivo e subordinado ao ambiente sociocultural de o ouvinte gostar da letra duma música, é elemento precário para caracterizá-la enquanto arte. A menos que se admita a existência duma “boa música” para uns que não a seja, concomitante, para outros.

E “gostar” é um verbo transitivo, intransitivo ou intransigente? A pergunta adquire importância para além da retórica se nos ativermos à gravação de Caetano Veloso para a música Você não me ensinou a te esquecer (assim mesmo, os pronomes “você e “te” na mesma frase), original do compositor Fernando Mendes, sucesso “brega” na década de 1970, integrante da trilha sonora do filme Lisbela e o prisioneiro (Brasil - 2003). Muito embora a profusão de elogios (mas também críticas afiliadas ao conservadorismo preconceituoso), alguns preferiram o eufemismo (nossa dissimulação vai para o trono ou não vai?) no intuito de condenar o cânone da MPB pela “heresia”. O texto assinado pelo jornalista José Teles em 03/08/2003, publicado no site www.nordesteweb.com, é bem ilustrativo quanto a isso: “Caetano Veloso cantando Fernando Mendes é fácil de entender, é notória sua capacidade de transformar em brilhantes os diamantes do repertório do povão” (grifo meu). Mas me parece difícil admitir a ocorrência dessa metamorfose tão profunda, como insinua, competente, o repórter. Porque se o grande “quasímodo” presente no “brega” romântico está na letra, “simplória”, “sem literariedade”, sem “apuro estético”, Caetano não reescreveu nenhum verso. Logo, não reside em sua linguagem escrita, “áspera”, o motivo de o “brega” romântico ser considerado “menor” na música produzida no Brasil. Entendo, inclusive que o vocábulo “sentimentaloide”, muito usado para diminuir o estilo em tese, não passa dum sinônimo ridicularizante do aplaudido “lirismo”. Se este possui conotações elevadas, diáfanas, imateriais, aquele seria um “exagero” sentimental. E, como já foi dito, muitos sustentam, ainda que à boca miúda: certas emoções não devem ser extravasadas com muita ênfase. Daí, para não respingar “mediocridades ralés” num dos maiores nomes da MPB e nela mesma por consequência, daí parte da crítica ter afirmado que Caetano não emprestou sua voz a uma música choramingas, e sim lírica. Bela saída retórica, sem dúvida.

5 comentários:

  1. Olá Eduardo, parabéns pelo ensaio, abordando o campo musical, que mostra sua versatilidade como analista literário. OLha, concordo com o preconceito da elite quanto a musica considerada "brega", particularmente não gosto deste estilo musical, mas o aceito, pois para minha desgraça meu marido gosta... eheheh
    mas o que é a convivência se não a ceitação do outro na sua diferença?
    É indubitavel a força que esta musica tem, o grande publico que alcança,é uma linguagem popular e portanto também faz rodar uma industria milionária, como disse o Zeze de camargo: " Nóis é brega, mais nóis anda de jatinho", eheheheh
    abraços
    REnata

    ResponderExcluir
  2. Renata,
    Obrigado pelos comentários. Entendo que boa parte das letras do chamado "romântico brega" não possui, em si, má qualidade textual, embora não tenha o refinamento próprio de certas figuras de linguagem, limitando-se a metáforas de rápida assimilação e hipéboles, por exemplo.

    Um fator que faz desse tipo de música uma espécie de "patinho feio" da musicalidade brasileira talvez esteja na interpretação, quase sempre exagerada quando, no mais das vezes, a música ficaria melhor com menos exarcebação. Muitas músicas cantadas por Agnaldo Timóteo (desculpe a exumação do cadáver, por exemplo, são (ou eram) assim. Mas não tenho qualificações para discutir a fundo a arte de interpretar.

    Um abraço,
    Selga.

    ResponderExcluir
  3. Olá Eduarda, esse texto é muito impotante para historia da musicalização pois, a musica brega ainda é coisa nova mas, no futuro será chamado de clasico como são chamadas hoje as canções de chiquinha da gonzaga e outros de sua época, pixiguinha, Cartola e muitos clasicos cantados pela juventude que se dizem apaixonados por esses estilos.

    Guto Gomes
    Vitória ES

    ResponderExcluir
  4. Obrigado pela observação, Guto. Tomara, realmente, que o trabalho alcance tamanha relevância.

    Selga.

    ResponderExcluir
  5. vá tomar no cu filho de rapariga.

    ResponderExcluir